terça-feira, 2 de julho de 2013

O Tempo de Cada Um

Em tempos conheci um homem que, dizia ele, havia nascido no momento certo, no único momento em que poderia ter nascido.
O homem em causa retirava esta conclusão do facto do seu nascimento ter ocorrido em circunstâncias medicamente exigentes; se tivesse nascido dez ou, talvez, cinco anos antes , não existiriam os meios médicos necessários para impedir que o cordão umbilical, ou algo do género, o sufocasse no momento em que os seus olhos contemplaram, pela primeira vez, a luz deste mundo.
O momento do nascimento foi, diríamos, afortunado, mas o homem parecia extrair dessa fortuna um raciocínio que visava justificar a sua posição no mundo e o rumo geral da sua vida. Em virtude das circunstâncias do seu nascimento, ele teria que nascer naquele momento e em nenhum outro, ou seja, neste pequeno fragmento da História humana. Logo, segundo esta curiosa personagem, a sua vida teria que estar submetida a um propósito ainda oculto, a uma missão que teria um impacto visível no mundo em que vivia. As adversidades que enfrentava, crises pessoais e desaires seriam apenas um prelúdio à manifestação de um momento glorioso em que tudo faria sentido, em que tudo seria revelado. Procurar e entender esse momento -esse propósito- seria, assim, a demanda da sua vida. Pelo menos, esta é a minha interpretação das suas palavras, dado o contexto improvável da conversa.
Era uma forma de racionalizar a sua existência, algo que todos nós tentamos fazer. Como é evidente, é um raciocínio falacioso: a inexistência de tecnologia médica adequada apenas impediria o nascimento até ao aparecimento dessa tecnologia, nunca depois disso. Porque não depois, noutro momento, num futuro distante? Poderíamos, facilmente, concluir que o seu caso não é diferente de qualquer outro: o seu nascimento é fruto do acaso, misturado com sorte. Mesmo que resultasse da actuação de uma força divina, não me parecia que ele tivesse matéria de facto suficiente para sustentar tal teoria. Porém, não me sentia inclinado a promover um debate em torno da questão- era um pensamento interessante, por mais falhada que fosse a sua argumentação. Algures naquele tasco inominável ao qual fui parar, envolto numa penumbra de tabaco e empunhando a sua centésima imperial, o meu interlocutor falava com uma confiança férrea, com uma desenvoltura que só o álcool consegue proporcionar. Ali sentado, acabei por beber cada palavra, fascinado com, se nada mais, a fé que aquele homem colocava num conjunto tão circunstancial de factos.
A dada altura, dou por mim a pensar se, de alguma forma, aquele raciocínio se poderia aplicar a mim: será que nasci no momento certo, ou serei apenas um indistinto produto do acaso? E o que é o "momento certo"? Se assumirmos que tal conceito corresponde a uma forma de contributo para a elevação da humanidade, ou a uma forma de afirmação pessoal de acordo com o nosso papel na história, não posso deixar de sentir uma enorme desolação. Pergunto-me se não existiriam períodos históricos em que o contributo de algumas pessoas seria mais significativo. Pergunto-me se aquele criminoso que aparece nas notícias, por se ter envolvido numa rixa sangrenta, não teria sido, na Roma Clássica, um gladiador lendário. Pergunto-me se aquele meu amigo que preferiu abandonar a faculdade, e que sempre me fascinou com a profundidade do seu pensamento, não teria sido um brilhante filósofo renascentista. Ao invés, se Alexandre nascesse hoje, poderia aspirar à conquista do mundo? Se não, ele nunca seria Alexandre, mas algo diferente; algo, suspeito, não merecedor do epíteto "o Grande". No fundo, pergunto-me se não teremos nascido demasiado cedo ou demasiado tarde; se, noutro contexto histórico, não viveríamos com outro entusiasmo face aos acontecimentos que ditam a vida quotidiana. Citando uma passagem de um grande filme, somos "os filhos do meio da História", condenados a sonhar com um tempo, passado ou futuro, em que a nossa realidade seria radicalmente diferente- um tempo mais merecedor do nosso sangue e da nossa alma.                               



O autor deste texto repudia, desdenhosamente, o novo acordo ortográfico.










Sem comentários:

Enviar um comentário