Em tempos conheci um
homem que, dizia ele, havia nascido no momento certo, no único momento em que
poderia ter nascido.
O homem em causa retirava esta
conclusão do facto do seu nascimento ter ocorrido em circunstâncias medicamente
exigentes; se tivesse nascido dez ou, talvez, cinco anos antes , não existiriam
os meios médicos necessários para impedir que o cordão umbilical, ou algo do
género, o sufocasse no momento em que os seus olhos contemplaram, pela primeira
vez, a luz deste mundo.
O momento do nascimento foi,
diríamos, afortunado, mas o homem parecia extrair dessa fortuna um raciocínio
que visava justificar a sua posição no mundo e o rumo geral da sua vida. Em
virtude das circunstâncias do seu nascimento, ele teria que nascer naquele
momento e em nenhum outro, ou seja, neste pequeno fragmento da História humana.
Logo, segundo esta curiosa personagem, a sua vida teria que estar submetida a
um propósito ainda oculto, a uma missão que teria um impacto visível no mundo
em que vivia. As adversidades que enfrentava, crises pessoais e desaires seriam
apenas um prelúdio à manifestação de um momento glorioso em que tudo faria
sentido, em que tudo seria revelado. Procurar e entender esse momento -esse
propósito- seria, assim, a demanda da sua vida. Pelo menos, esta é a minha interpretação
das suas palavras, dado o contexto improvável da conversa.
Era uma forma de racionalizar
a sua existência, algo que todos nós tentamos fazer. Como é evidente, é um
raciocínio falacioso: a inexistência de tecnologia médica adequada apenas
impediria o nascimento até ao aparecimento dessa tecnologia, nunca depois
disso. Porque não depois, noutro momento, num futuro distante? Poderíamos,
facilmente, concluir que o seu caso não é diferente de qualquer outro: o seu
nascimento é fruto do acaso, misturado com sorte. Mesmo que resultasse da
actuação de uma força divina, não me parecia que ele tivesse matéria de facto
suficiente para sustentar tal teoria. Porém, não me sentia inclinado a promover
um debate em torno da questão- era um pensamento interessante, por mais falhada
que fosse a sua argumentação. Algures naquele tasco inominável ao qual fui
parar, envolto numa penumbra de tabaco e empunhando a sua centésima imperial, o
meu interlocutor falava com uma confiança férrea, com uma desenvoltura que só o
álcool consegue proporcionar. Ali sentado, acabei por beber cada palavra,
fascinado com, se nada mais, a fé que aquele homem colocava num conjunto tão
circunstancial de factos.
A dada altura, dou por mim a pensar se, de
alguma forma, aquele raciocínio se poderia aplicar a mim: será que nasci no
momento certo, ou serei apenas um indistinto produto do acaso? E o que é o
"momento certo"? Se assumirmos que tal conceito corresponde a uma
forma de contributo para a elevação da humanidade, ou a uma forma de afirmação
pessoal de acordo com o nosso papel na história, não posso deixar de sentir uma
enorme desolação. Pergunto-me se não existiriam períodos históricos em que o
contributo de algumas pessoas seria mais significativo. Pergunto-me se aquele criminoso
que aparece nas notícias, por se ter envolvido numa rixa sangrenta, não teria
sido, na Roma Clássica, um gladiador lendário. Pergunto-me se aquele meu amigo
que preferiu abandonar a faculdade, e que sempre me fascinou com a profundidade
do seu pensamento, não teria sido um brilhante filósofo renascentista. Ao
invés, se Alexandre nascesse hoje, poderia aspirar à conquista do mundo? Se
não, ele nunca seria Alexandre, mas algo diferente; algo, suspeito, não
merecedor do epíteto "o Grande". No fundo, pergunto-me se não teremos
nascido demasiado cedo ou demasiado tarde; se, noutro contexto histórico, não
viveríamos com outro entusiasmo face aos acontecimentos que ditam a vida
quotidiana. Citando uma passagem de um grande filme, somos "os filhos do
meio da História", condenados a sonhar com um tempo, passado ou futuro, em
que a nossa realidade seria radicalmente diferente- um tempo mais merecedor do
nosso sangue e da nossa alma.
O autor deste texto
repudia, desdenhosamente, o novo acordo ortográfico.
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