quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Nobre Zeca, Nobre Povo

Em resposta ao post anterior do H.M. Dantas*:

Amanhã, o primeiro-ministro e um cortejo de outras fracas individualidades, virão até à Faculdade de Direito de Lisboa e provavelmente serão recebidos com um "Grândola Vila Morena".

Está bom de ver que discordamos desde logo na premissa (encoberta) do respeitinhoEstando livres desse escolho, pensemos. Note-se: somos governados por pessoas de cuja seriedade se duvida amiúde e a quem estão associadas uma série de características que nem acharíamos adequadas para o nosso carpinteiro, se me permitem o menosprezo pontual de quem faz da arte da canalização profissão sua (más companhias, inexistência de verdadeiro curriculum, incapacidade de identificar e resolver problemas). Ainda, e para quem não concorde com esta opinião preliminar, não custará reconhecer que as pessoas - sim, as pessoas, nós! - têm sido alvo de medidas duríssimas das quais resultaria naturalmente o descontentamento, mesmo com um outro governo competente e credível. Bom, exercício hipótetico como se sabe porque, assim sendo, as medidas teriam que ser outras logo - pasmem-se os que andam distraídos -  a reacção seria outra.

Perante isto, que fazemos nós? Cantamos. Claro que eu admito que há um certo embaraço que é indisfarçável em ouvir o Governo do país ser calado, literalmente, por um conjunto de cidadãos. Então, o poder caiu na rua? Talvez fosse isto que valesse a pena discutir. Ao invés, há por aí quem, moralizando, arrisque argumentos demasiado laterais para serem levados a sério, como os trazidos aqui pelo H.M. Dantas, cuja tese se resume em: "Zeca Afonso deve estar a dar voltas no caixão por ouvir uma música sua ser tão cantada/ por algumas pessoas/ para fins de contestação, portanto políticos em sentido amplo". Não é preciso ser o maior dos conhecedores da vida, obra e pensamento político de Zeca Afonso para perceber que isto para ele nunca seria menos do que uma efeméride muito feliz. Analisemos com seriedade q.b. um argumento não sério:  sempre se tem ouvido que as canções do Zeca são insusceptíveis de apropriação desta ou daquela facção. Que eu saiba, uma canção torna-se vulgar quando é cantada por muita gente. Aliás, é para isso que elas existem e é disso que se orgulham os seus compositores. Ora, é curioso que o H.M. Dantas venha invocar que a Grândola está caduca, ao mesmo tempo que diz esta "era um símbolo, se o era", mostrando-se portanto desgostoso, desiludido - em suma, H.M. Dantas perdeu a vontade de cantá-la. Como ele, há mais. Nada contra: já há por aí quem desafine o suficiente. Fica difícil é de conceber que uma canção menos cantada ou seja, só cantada "por alguns" neste contexto passe por isso a ser de uma "vulgaridade ultrajante". A esta altura, já o leitor percebeu que a dupla adjectivação feroz se refere ao propósito contestatário com que a música tem sido cantada - até porque falamos de uma canção que é repetida ano após ano no 25 de Abril e não é isso que é ali invocado. Onde se percebe o resgatar da ditadura: é lá que é permitido - bem-vindo - catalogar uma acção de que se discorda como atentatória da moral e dos bons costumes, o dito "ultraje". E tentar desumanizar o acto, como se não fosse desencadeado pelas condições de vida cada vez piores - perante estas, canta-se - e não prosseguisse o desiderato de mudar o rumo dos acontecimentos.

Talvez fosse melhor discutirmos política, em vez de canções.



*É também para isto que serve um blog.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Cântico de Humanidade


"Hinos aos deuses, não.
Os homens é que merecem
Que se lhes cante a virtude.
Bichos que lavram no chão,
Actuam como parecem,
Sem um disfarce que os mude.

Apenas se os deuses querem
Ser homens, nós os cantemos.
E à soga do mesmo carro,
Com os aguilhões que nos ferem,
Nós também lhes demonstremos
Que são mortais e de barro."

Miguel Torga, in 'Nihil Sibi'

sábado, 16 de fevereiro de 2013

O (auto-intitulado, que nem podia ser de outra maneira porque desconfio que seja impossível saber) primeiro post mais curto da blogohistória

1º post, 1º post... Há-que fugir de certos lugares comuns para começar em grande, veja-se o contra-senso - e portanto não farei nenhuma apresentação longa ou vagamente profunda sobre: o que é isto; a que se propõe isto; de que falaremos aqui; nem de quem sou, de onde venho e para onde vou (ai a profecia do lugar comum a perseguir-me) - guardemos isso para alturas de insónia ou de menores afazeres. Entretanto, espero ter cumprido o desiderato aposto no título. Se esse não provar, candidato-me ao título mais comprido da blogohistória. A propósito, já alguém tinha escrito blogohistória antes?

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Florbela e Junqueiro

Comprei hoje dois livros na FNAC, ambos pertencentes à «Coleção Klássicos» - que, para nos exprimirmos em bom português, diremos que é uma colecção de títulos clássicos da literatura portuguesa, vendidos ao público a preço não proibitivo. É raro em Portugal desimpedir tão liberalmente o acesso à cultura. Cada uma das obras da referida colecção - que integra algumas das melhores realizações da nossa cultura em todos os tempos - é vendida a 2,50€. Quanto à materialidade, as edições não serão das mais admiráveis como objecto. Além disso, alardeiam os seus publicadores de que esta é a primeira colecção de língua portuguesa que respeita o acordo ortográfico - o que mais preferira esconder. Não obstante, passe: remonte-se à substância da questão e achar-se-á nela virtude.

Comprei dois livros, como disse: colmei duas lacunas na minha biblioteca - a primeira, Pátria, de Guerra Junqueiro, a segunda, os Sonetos, de Florbela Espanca.

O último destes livros de versos reúne os sonetos de Florbela, desde as páginas de O Livro das Mágoas até à Charneca em Flor. À medida que se lê percebe-se bem o crescendo operado por Florbela desde alguns dos sofríveis sonetos com que iniciou a sua carreira literária até alcançar o domínio quase perfeito da técnica do soneto nas derradeiras composições, o que significa, sobretudo, aliar as exigências do ritmo à expressividade da oração - atinge o zénite do seu estro no soneto Amar!, em que dá a síntese definitiva de tudo quanto escreveu quando confessa a urgência de «amar, amar perdidamente», num movimento da vontade e da sensibilidade que se antolhe mesmo indiferente a qualquer juízo moral - «É mal? É bem?». Mas ensombra já o precípuo momento da obra o prenúncio do destino fatal, anunciado no soneto chamado Não Ser - «Quem me dera» - escreve ela - «voltar à inocência das coisas brutas, sãs, inanimadas».

Pátria, de Junqueiro, merece-me uma atenção toda especial por culpa daquele elogio que lhe fez Fernando Pessoa um dia, o dia em que lhe perguntaram qual era a melhor obra da literatura portuguesa dos últimos trinta anos. Dos últimos trinta anos, bem como de toda a literatura lusitana, disse ele, a melhor obra que já se deu à estampa foi Pátria, de Junqueiro. Os Lusíadas - concede Pessoa, quase por delicadeza - ocupa honrosamente o segundo lugar. Uma pretensão surpreendente, na origem da qual está quase de certeza o acinte que Pessoa sempre reservou a Camões. Celebrado como o grande poeta pátrio, Camões foi, por assim dizer, a némesis de Pessoa, com o qual ele procurou medir forças a quatro séculos de distância. Nunca - e é preciso ter este facto em consideração para avaliar bem aquelas declarações -, nunca foi com Junqueiro, ou com este seu livro, que Pessoa se preocupou em rivalizar. De qualquer forma, para ajuizar rectamente da verdade, lerei o livro e verei se no final me resta a ousadia de o proclamar também o melhor da nossa literatura - pelo menos, à frente de Os Lusíadas.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Sê quem tu és

«Sê quem tu és» - dizem-te hoje de todos os lados. Se com isso querem dizer para fugires daquilo que em consciência sabes ser mentira, está bem dito; se querem antes dizer para te resignares contigo, não te podiam dar pior conselho. Aceitares-te sem reservas é como trazeres para morar contigo o teu pior inimigo. Sabes bem o quanto és mau. Quantas das coisas que a cada momento pensas te envergonhariam de morte se aqueles que mais amas as pudessem ver? Quantas das coisas que fazes todos os dias ocultamente, se postas a descoberto, não te condenariam aos olhos dos que gostam de ti? Não procures ser quem tu és: procura ser bom.

Questão de delicadeza

É uma questão de delicadeza agradecer os elogios que nos são feitos, embora se lhes deva dar pouco ou nenhum crédito. É também conveniente, de quando em vez, ser reprovado ou criticado, mesmo quando se tem pouca ou nenhuma culpa no erro que se cometeu ou até nas ocasiões em que se não errou em coisa alguma. Tais episódios têm um préstimo, a saber, apoquentar a vanglória. Os louvores dos homens não são nada: aqueles que te exaltaram logo se desfazem de ti e aqueles que caminharam contigo não te ampararão na tua queda.

Pessoa e o seu génio

Nunca me deixa de surpreender Pessoa e o seu génio. Que foi poeta, e dos melhores que já tivemos, ninguém o discute. Que foi prosador, melhor ainda do que foi poeta, é o que acabará por se descobrir quando o homem um dia puder abandonar com o prazer de obra lida o Livro do Desassossego. Mas Pessoa não escreveu só; por exemplo, foi também inventor: um dos muitos rostos do seu génio que poucos conhecem. Transcrevo a seguir uma notícia do Diário de Notícias, datada de 30 de Novembro de 2005.

«Empreendedor e inventor 

É o Pessoa empreendedor e inventor, por vezes alucinante, que o escritor António Mega Ferreira foi descobrir. E fê-lo pelo lado da sobrevivência material, daquilo que o poeta chamava "não sem desconfiança a vida prática", fazendo justiça ao "inultrapassável trabalho de João Rui de Sousa" (Fernando Pessoa, Empregado de Escritório, Sitese, 1985). Sobre as suas iniciativas comerciais, empresariais e em nome individual, tratam os textos incluídos na obra Fazer pela Vida/Um Retrato de Fernando Pessoa, o empreendedor (Assírio &Alvim).

Estuda-se neste livro, de leitura aliciante, o que foi "empreendimento seu, o de Pessoa, mesmo que sonhado (com os seus numerosos inventos)". Mega Ferreira fala daquele que foi algumas vezes até empresário, abordando outras suas tentativas para "fazer dinheiro".

A empresa Cosmópolis - que Zenith entende poder ter sido o primeiro nome da Olisipo -, é um impressionante exemplo da largueza de interesses de Pessoa. Tratava o projecto de informações diárias a propósito de câmbios, de partidas e chegadas de vapores, de viagens de comboio, de traduções, da montagem e realização de escritos, de buscas e trabalhos literários por encomenda, etc.

Quanto ao Pessoa inventor, refira-se a "carta-sobrescrito", que viria a popularizar-se na II Guerra Mundial, um carreto da máquina de escrever (na ilustração), um sistema de estenografia, um projecto de máquina para guardar papéis... O Pessoa editor não fica esquecido neste livro revelador.»

Lido em: http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=630476

Convite

Convidou-me João Mendes para ser co-redactor do presente blogue. Na altura do convite, perguntei-lhe eu de que tratava o mencionado blogue. Respondeu-me ele que tratava de tudo – querendo com isto indicar que não tratava de nada. Essa resposta, mais que qualquer outra, agradava ao carácter naturalmente diletante do meu espírito. Eis uma das razões – sem ser, contudo, a principal - que me fez aceitar tão amável convite. Além dessa, há outra, a suprema. Essa ressuma no fundo do meu ser e não posso abandoná-la. Escrever, em mim, não é coisa à parte de viver. Sou neste aspecto menos livre que todos. Não está na minha disponibilidade recusar este convite. A mesma condição patológica que me constrange a escrever, constrange-me a aceitá-lo.

Não há mais escrever do que escrever para ser lido. Que assim é, é coisa que se deduz do próprio acto de escrever, pois que a função natural da linguagem é comunicar algo ao outro. O nosso Fernando Pessoa, que morreu praticamente impublicado, escrevia para o mais obscuro de todos os públicos, os vindouros, nos quais encontrou o prazer presente da fama futura. Eu, que como todos os que escrevem, escrevo para ser lido, não quero esperar pelos vindouros. O que resulta das considerações precedentes é que a atracção inelutável pela escrita vem sempre acompanhada da vontade de dar a ler aquilo que se fez com as palavras, mais tarde ou mais cedo, e sempre mais cedo do que tarde. Por isso, é pueril que me façam até aquela objecção sonhada de que se pode escrever uma literatura sepulta. Não pode. Aceitar publicar, como aceitar escrever, é sintoma de uma só enfermidade do espírito, aquela mesma que vai entranhada no meu ser.

Escrever é um acto de grandeza, entenda-se isto no bom ou no mau sentido que possa ter. Escrever, porque é sempre comunicar, é sempre dirigido ao outro, e dirigido ao outro como partindo de nós e levando algo que é nosso – é sempre pretender que se tem o que dizer ao mundo. Pôr fora de nós a nossa individualidade, pedir que nos oiçam ou leiam, supõe sempre certa presunção. Que me diz que faço melhor aos homens preferindo a palavra ao silêncio? E escrever é, evidentemente, uma certa nudez, já não do corpo, mas do espírito. O que se escreve é uma janela que dá para a alma. Expomo-nos demasiado quando escrevemos: trazemos para a luz tanto da nossa inteligência, tanto da nossa vontade, tantas e tantas das nossas paixões, e, afinal, também os limites em que elas se encerram. A escrever me obriga a lei a que estou sujeito – nunca obedeço livre do embaraço que acompanha a satisfação pública de uma compulsão.

Tais as razões - tão lúcidas quanto as consigo achar - para aceitar escrever para este blogue.