terça-feira, 1 de outubro de 2013

Uma pedra no sapato

Quem me conhece sabe que é meu hábito andar por aí com o calçado desapertado. Não é de agora - os hábitos de infância são, em geral, bons de manter.  Assim andando, vou sendo avisado por quem passa ou vê passar para o facto, como se ele fosse qualquer coisa importante. Dirá o leitor que a cordialidade dos transeuntes contrasta com o meu próprio desmazelo. Não me parece, admitindo discordâncias neste ponto absolutamente irrelevante. O que de interessante há nisto é a extraordinária amostra de solicitude das gentes que podemos observar. Observemos então: é legítimo pensar que aquele que avisa previne uma queda embaraçosa para o sujeito desatado. Haverá um risco diminuído pela acção do observador, em consequência. Mas que risco há mesmo? Não creio haver relatos de situações como aquela em que António pisa com o sapato apertado o atacador desapertado, e acto contínuo, inclina-se para a frente, desferindo portentosa cabeçada no espantoso peito de Bruna que, incapaz de suportar virilmente o impacto, tomba para trás batendo com a cabeça no chão e morrendo. Ora, o que com isto pretendo provar é que o aviso visa, essencialmente, proteger o destinatário do mesmo. Portanto, a acção solícita é altruísta. Tenho para mim que o altruísmo é bom e que será tanto melhor quanto mais importante for o fim com que é praticado. Claro que existem diferentes perspectivas sobre a importância do fim: a minha e a de quem me avisa - eu, ser pouco dado a apertos, tendo a achar que é desproporcionado o altruísmo que é dedicado a um atacador; a verdade é que a realidade obriga-me a constatar que esta minha opinião é claramente minoritária. Não é que seja algo desprezível, embora às tantas incomode. O que eu gostava mesmo é que se tomasse consciência da magnitude deste nosso costume bem como da inconsequência ontológica do sapato desapertado em via pública. Estaria então dado o primeiro passo para civilizar um pouco a malta da metrópole no que toca à interacção social. Eis o egoísmo como supremo altruísmo, no fim de contas.

sábado, 27 de julho de 2013

Desta vez é diferente

Hoje, no Expresso, uma frase de Pedro Adão e Silva que diz tudo acerca da remodelação governamental:  
"O pavor dos aparelhos partidários em se verem afastados do poder ajudou a cerrar fileiras em torno de um líder falhado e desautorizado pelo Presidente (Passos) e vergou um que se quis demitir (Portas)"
Hoje no Expresso via http://corporacoes.blogspot.pt/
*clicar para ver a imagem em tamanho real

terça-feira, 23 de julho de 2013

A Sombra

A sombra da cadeira onde te sentas prolonga-se,
Aumenta-te enquanto o Sol continua a queimar
Não tens de ser a profundidade de um olhar,
A falsidade de um sorriso ou a insegurança de um toque leve
No peito.

Mesmo com a mão quente,
A minha frieza arrepia-me os pelos dos braços.
A tua mão perfura-me o peito,
Entra por ele e acaricia o que vive lá dentro.

As ruínas e os destroços que deixas no meio do gelo a derreter
Afogam-me.
Eu não sou de gelo, sou de pedra.
Mas as gotas vão pingando, latejando e escrevendo história
Dia a dia, vais-te cravando em mim.

Um dia vais poder preencher-me a fraqueza
Fraqueza que tu criaste no meio da força
Era a única forma que tinhas de apagar o vazio, de o preencheres.
De me preencheres.

sábado, 20 de julho de 2013

Mais vale tarde do que nunca (!?)


Quando muitos pensavam que não tínhamos um Presidente da República, eis que ele surge para resolver a crise política (!?) que o Dr.º Paulo Portas decidiu abrir, aproveitando a saída do Vítor, para tentar ficar com a parte de leão do programa governamental .
Tudo bem, temos um presidente que parece estar preocupado efectivamente com a crise do país e que está disponível a procurar soluções para a "salvação" da pátria. Aliás, o presidente da república não deve servir só para promulgar diplomas legais e visitar ilhas selvagens, deve também ele ser capaz de exercer uma magistratura de influência junto dos partidos políticos e governo, procurando a existência permanente de diálogo entre oposição e governo, pois, quer se queira quer não, em Portugal as decisões governamentais passaram sempre pelos líderes políticos do PS e do PSD. Gostei que Cavaco tenha "obrigado" os dois partidos a sentar-se à mesa e discutirem um acordo de "salvação" nacional, o que parece-me que faz todo sentido. 
Mas, caro leitor, este texto não será para elogiar Cavaco Silva, antes será para apontar mais uma vez os erros políticos deste senhor. Desde logo, esta ideia do acordo de "salvação nacional", aliás ideia que defendi mesmo antes da assinatura do acordo com a Troika, chega só dois anos atrasada, pois qual é o sentido de se fazer um acordo desta envergadura, que incide sobre a reforma do Estado e o acordo da Troika, a um ano e poucos meses do fim da execução do programa e com um governo altamente fragilizado? Onde estava Cavaco Silva quando o Governo demissionário de José Sócrates foi negociar o programa da Troika? Não se formou um governo de salvação nacional a partir das últimas eleições para executar o programa da Troika, tout court,  porquê? Desde logo é fácil perceber, Cavaco Silva não tinha interesse nisso e acreditava que Passos Coelho teria uma maioria absoluta. Os resultados estão à vista. 
Outro erro de Cavaco Silva foi ter deixado Passos Coelho ignorar e cortar o diálogo directo com o PS em todas matérias que estariam relacionadas com o programa da Troika, o PS foi desresponsabilizado pelo programa da Troika por este governo. Não é de admirar que o PS não tenha interesse neste acordo de salvação nacional, tanto por razões políticas como democráticas, pois não é legítimo pedir-se ao maior partido da oposição que seja parte da salvação nacional, quando o actual primeiro-ministro fez questão de afastar o PS das discussões e das reuniões com a Troika. Isto só demonstra como o presidente ignorou os problemas do país, pois era público que o PS não estava a ser envolvido nas decisões e revisões da Troika e ainda assim este faz fé que o apelo ao "patriotismo" do PS o faria regressar à mesa das negociações, mesmo após tudo isto, ora, nada mais errado. 
O patriotismo do PS revelou-se quando Seguro recusou qualquer acordo com este governo, ser-se patriota não é o mesmo que fazer parte deste governo, pelo contrário, neste momento, patriotas são aqueles que exigem uma renovação democrática do governo e um verdadeiro acordo para as reformas do Estado entre PS e PSD, livre de pressões eleitorais marcadas pelo presidente.
Para os que questionam-se acerca da relevância da figura do Presidente da República no sistema  político e constitucional português, eis, aqui, a demonstração do papel fulcral que o mesmo deve assumir, garantindo o regular funcionamento dos órgãos democráticos, e isto garante-se exercendo a magistratura de influência, fiscalizando a constitucionalidade das decisões do Parlamento e do Governo e, por fim, se necessário dissolver o Parlamento quando o Governo não tenha mais condições para governar, quer políticas como sociais. Escusado será dizer que em nenhuma destas áreas Cavaco tem tido nota positiva. 
Cabe fazer a pergunta: Como estaria a situação política do país, neste momento, com outro Presidente da República? 

Fábio Amorim
Jurista

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Tese do apocalipse

Todos conhecemos a frase - das citações de fonte duvidosa é das que mais aprecio - que diz algo como "os homens bons estão cheios de dúvidas e o maus cheios de certezas". Pretendo retomá-la, introduzindo-lhe uma variante: os homens bons da nossa polis têm tendência para serem condescendentes, moderados, abertos ao diálogo, não levarem as suas opiniões demasiado a sério. Os homens maus para serem obstinados, portadores de convicções extremadas, senão de extremismo de convicções.

Comparemos a intervenção de um académico - tomemos por exemplo Viriato Soromenho-Marques - em que a fundamentação é tão rica que a importância da tese se perde, com as intervenções do Primeiro-Ministro em que só há teses, não há fundamentação (virá algum economista explicá-la como se de verdade indisputável se tratasse). Problema: a comunicação social pega na tese- o título, a primeira página. Há ainda a transposição deste raciocínio para os partidos políticos, segundo o qual os partidos moderados seriam mais abertos ao diálogo do que os partidos dos "extremos" (por definição ideológica mais arreigada). A realidade recente tem vindo a infirmar esse lugar-comum do politólogo português: o PSD de Passos Coelho é cego ao diálogo - podemos afirmá-lo, correndo o risco de pecarmos por defeito dado que, como é sabido, as pessoas invisuais têm grande capacidade auditiva, o que não se verifica. Diferentemente, o CDS apresenta-se como moderado e aberto ao diálogo. Não por acaso é a linha mais ortodoxa que foi fazendo vencimento...até ao momento em que o CDS passou a ser obstinado. Estão a ver ? (Dir-me-ão que tal se deve a uma mudança de linha política do PSD que o coloca mais ao extremo que o CDS. Talvez, mas esse é um aspecto lateral à questiúncula que tratamos). Homens de boas ideias de todo o mundo uni-vos. Lembrai-vos de que como disse Fernando Pessoa: "Toda a teoria deve ser feita para poder ser posta em prática, e toda a prática deve obedecer a uma teoria".

A experiência diz-me que os mais mal-preparados procuram incutir certezas; os melhores procuram incutir dúvidas. O apocalíptico disto é que governar (em sentido lato) exige certezas. Isto em papéis de destaque nas várias esferas de poder, seja na universidade, no governo ou numa equipa de futebol.
Tentando relativizar: os bons tendem a importar a liberdade académica para a política; os maus, parecem comportar-se como comerciantes, do tipo vendedores do ramo imobiliário. Isto é: a lógica do mercado na política.

No fundo trata-se de ser entendido, de uma questão de linguagem. A conversa de mercearia funciona e tem adeptos no campo do comentarismo político (perdão, de merceeiro). Numa sociedade com níveis de literacia (não estou a falar das estatísticas) realmente baixos a capacidade académica é confundida com lirismo; a conversa de café é confundida com discurso de Estado (v. o exemplo histórico de Salazar). Daqui decorre uma regra não escrita do jogo político português: que os académicos tenham que descer à banalidade para se prolongarem no poder (v. o caso de Cavaco).

Portanto, eis a receita para evitar o apocalipse:

i) às pessoas de boas ideias pedir teses;
ii) às pessoas de más ideias pedir fundamentos.

Porque aquele que só tem as premissas estará mais perto de qualquer coisa de bom do que aquele que só tem a conclusão.
Talvez assim o tabuleiro se equilibre.

Da crise para a crítica


Por Diogo N. Gaspar*



Consumida pela atualidade mais recente, quase passou despercebido a notícia de arquivamento do inquérito aberto a Miguel 
Sousa Tavares, depois deste ter respondido assim ao Jornal de Negócios: Bepppe Grillo? Nós já temos um palhaço. Chama-se Cavaco Silva.Sobre as declarações considerou o Ministério Público que as mesmas se encontravam a coberto do direito à liberdade de expressão do entrevistado, mas, a mais da avaliação dos magistrados do MP, o episódio passaria à história como um incidente político pouco feliz para a instituição em causa, a Presidência da República. Não fosse a apresentação de queixa ao Procurador-Geral da República e poucos se lembrariam da manchete do Negócios, com a entrevista de Sousa Tavares. 

A demissão de Vítor Gaspar, a tentativa frustrada de Paulo Portas e a crise política que se sucedeu, adivinhariam outra palhaçada. Um pedido de conciliação, baseado no impossível: a aplicação de um programa incapaz de reunir qualquer consenso, a não ser daqueles que não podem deixar de capitular com o voluntarismo do chefe do Governo. Parece que Cavaco Silva se rendeu a este grupo. Ao fazê-lo, evidencia a estreita leitura política que faz dos acontecimentos, maxime dos motivos da demissão de Gaspar: uma execução orçamental e fiscal falhadas; a incapacidade do programa para cumprir com o pagamento da dívida; a previsibilidade de terríveis consequências para a economia portuguesa, originadas pela espoliação fiscal das famílias e das empresas. Confiando na continuidade, o Presidente dobatismo, é agora o Presidente da confirmação, que se refugia na necessidade de apaziguar uma crise política, para adiar os problemas, enfim, para adiar o futuro. Como convém ao circodos mercados e à deriva das instituições europeias. 

Antes de Sousa Tavares falhar de palhaços, já Mário Viegas dizia assim no seu Manifesto Anti-Cavaco: Não é preciso saber contar pelos dedos para se ser professor de Economia, basta fazer contas pelos dedos como o Silva, basta não ter escrúpulos – nem morais, nem artísticos, nem humanos – basta andar com as modas europeias, com as políticas comunitárias e as opiniões de Bruxelas. Assim, ontem como hoje, Aníbal continua cavaco, tanto quanto dizia Viegas: O cavaco é Aníbal, o Cavaco é Guterres!. Era o manifesto de um ator, que é como quem diz, o manifesto de um palhaço. Do tempo em que os palhaços representavam, mas ainda não governavam.


*N.R.: Aceitando tipicamente o convite d'Os Típicos, o que muito agradecemos. 

quarta-feira, 10 de julho de 2013

agitação no caixão; erecção post-mortem

Não esperava por esta. Como optimista que sou, tento sempre ver o lado positivo das coisas. À primeira vista, duas notas:

Cavaco “fartou-se” da brincadeira, à sua maneira, não confia em Portas e antecipa eleições para altura adequada;
Ao mesmo tempo, dá uma “oportunidade” ao PS através de um acordo de salvação nacional, “queimando” Seguro e abrindo caminho a uma nova liderança.

domingo, 7 de julho de 2013

Manifesto contra as profissões terminadas em "istas"

Diz Miguel Morgado a propósito do socialismo (in Autoridade, Fundação Francisco Manuel dos Santos,  2010) que as ideologias acabadas em “ismo” (outro ex., o nacionalismo) importam alguma indefinição (variabilidade) de conteúdo. À luz de dados empíricos recentes – muito recentes e escaldantes aliás, eu avançaria com uma proposta radical. A saber: que se vá mais longe e se diga de uma vez por todas que todas as actividades profissionais designadas por nomes acabados em “istas” (no plural)  são altamente falíveis – ou, retomando o paralelo inicial, são de conteúdo dúbio em face do que seria expectável da sua nomenclatura. O leitor quer provas, com certeza. (E eu mesmo precisarei delas para duvidar menos desta reacção irada ao calor). Comecemos pelas constatações mais óbvias, caminhando paulatinamente para uma maior finura de análise. Por lapso que nos é imputável, não conseguiremos lá chegar neste texto.

Os metereologistas disseram que não ia haver Verão: enganaram-se, como é fácil sentir. Os futebolistas: tipos que treinam várias vezes ao dia para falhar ao nível do jovem escriba e dos seus companheiros mais desprovidos de técnica numa qualquer futebolada semanal. Os economistas, estirpe de pessoas que mais tempo de antena tem em Portugal, andam a coleccionar previsões erradas sucessivas. Atentemos: se estas estão ao nível das falhas dos meterologistas quanto à forma epidérmica de serem sentidas, já são incomparavelmente mais desesperantes quanto à duração dos seus efeitos, como se os sucessivos erros de previsão formassem uma espécie de erro perpétuo, sem fim à vista (tal como a crise –  Ah… e esta, hein? Eu não acredito em bruxas, pero que las hay, las hay…).
Até as próprias floristas são pessoas cujo trabalho sofre forte discussão, em especial por parte das freguesas mais idosas. O que há de mais certo neste mundo (isto é empirismo, não é machismo) é ser difícil escolher flores. A composição de um ramo de flores é feita de escolhas que, no seu conjunto, serão esteticamente questionáveis – sempre. Exemplo disso é a dificuldade comprovada de “compor o ramalhete” – expressão que é particularmente eloquente depois dos acontecimentos políticos dos últimos dias.
Passemos para categorias mais gerais:  os especialistas (em assuntos) são, na verdade e nas mais das vezes, pessoas muito dadas ao bitaite. E como saberá o leitor, “quem muito fala pouco acerta”. Também com risco bastante alto de designação equívoca face à realidade, veja-se o caso paradigmático d’os activistas, que em rigor não são mais nem menos do que cidadãos políticos, que defendem e pretendem implementar a sua mundividência na sociedade (se bem que aqueles que o fazem apenas às quintas feiras à noite tenham uma paradoxal tendência para o fazer contra as evidências do mundo – falaremos sobre isso, atempadamente. Promessa irrevogável).

Após a brevíssima anotação da realidade a que procedemos, há uma conclusão que devemos extrair: menos atenção a esta malta se faz favor. Já na Grécia Antiga os filósofos se tinham pronunciado contra a basófia d’os sofistas (e não contra a loucura dos pintores, ou a arrogância intelectual dos professores). Não por acaso sucedeu assim: a terminação vocabular das profissões não é inocente, porque não o é também  a orientação constante para o engano protagonizada por metereologistas, futebolistas, economistas, floristas, especialistas e activistas (ainda que em escala variável).
Está dado, segundo me parece, o mote para uma revolução coperniciana no modo de creditarmos credibilidade profissional aos outros.






P.S.: Perdoe-me o leitor mais político por não mencionar no texto os cavaquistas. Não o faço, como poderia ser levado a pensar, por aqui mencionar apenas profissões sérias e promotoras, se exercidas acertadamente, de algum impacto positivo na sociedade. Omito-os, na verdade, por não querer estar de novo a tocar em assuntos fúnebres (metáfora a que recorri no meu 1º post). Não há necessidade de estar a chocar repetidamente a sensibilidade dos nossos avisados (dois) leitores com assuntos que fedem. 

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Em defesa do ideal na Política

Há um erro muito difundido na nossa época que diz que em alturas de crise precisamos de políticos pragmáticos, querendo com isto dizer-se que precisamos de líderes que não se preocupem demasiadamente com ideias, ou, o que ainda seria pior, com ideais. A tese, que é opinião corrente, parece-me uma grande insensatez. A afirmação contrária é que é a verdadeira: nunca como nas grandes crises necessitamos tão desesperadamente de idealistas. Ou melhor: direi, para que não me acusem de incorrer num vício de pensamento abstraccionista que divide e opõe a teoria à prática, que na política poucas coisas são mais práticas do que os ideais. 

Não me é difícil adivinhar o esgar de desprezo de quem rejeita tudo o que remotamente se assemelhe com metafísica nem o dos fervorosos apologistas dos homens de acção quando ouvirem dos meus lábios ou lerem da minha pena que a Política é ciência. Ciência prática, verdade; ciência, ainda assim. É bem possível que depois de demorarem um pouco o olhar no meu texto me acusem de ser idealista, o que para homens dessa estirpe equivale a desacreditar a minha aptidão para a vida prática. Para esses tudo o que se eleve acima do comentário político ao jornal quotidiano ou do pregão de uma ou outra ideia revestida dos caracteres do Absoluto, sublimada a móvil de toda a vida partidária, pertence a uma esfera totalmente alheia aos graves problemas do país, portando mais afinidades com o mundo das fantasias teóricas do com qualquer aspecto da realidade. No entanto, o que esses homens estão a exigir é que o homem entre na Política guilhotinado - estão a querer realizar o absurdo de o homem partir para a acção sem partir da ideação.

Mas é conveniente que eu diga o que entendo por ideal. Com a palavra ideal quero significar a convicção de estar na posse da verdade em relação a um certo número de questões fundamentais sobre a política, como o são, por exemplo, as perguntas o que é a política?, qual é o fim da política?, qual é o melhor regime político?. Estas interrogações podem parecer remotas e totalmente alheias ao que verdadeiramente interessa quando se quer fazer política.  Uma reflexão mais atenta revela que não é assim. O modo como o homem responde às primeiras questões em qualquer ordem de conhecimento, acaba por determinar o modo como responde às questões que lhe são colocadas todos os dias. É característico da mente humana encontrar as suas conclusões mais particulares partindo de princípios gerais e compreender a contingência através do que é universal. Se a política não passa também por ser uma ciência, acabará por ser apenas uma prudência que se consome nas contingências do devir quotidiano - mas a prudência sem ciência é bem mais uma imprudência. É que não se pode dirigir a acção política convenientemente se não se sabe qual é a direcção; e se cada acção humana é um meio para um fim, não se pode agir eficazmente se não se sabe quais são os últimos fins a que a acção política deve ser ordenada. Quando é assim, a política assemelha-se a um navio que na sua navegação evita os bancos de areia, que é preservado dos naufrágios pelos esforços da tripulação, mas que não tem um porto em que atracar. O ideal deve ser o ponto de partida porque proclama o ponto de chegada. Por isso, em tempo de crise, em que tudo é posto em causa, não precisamos tanto do pragmatista como precisamos do idealista, que nos lembra aquelas coisas que não podem ser postas em causa. Sou da opinião que o ideal está necessariamente ligado à política enquanto encarada também como uma ciência - é na ciência, na busca metódica pela verdade, que devemos procurar o nosso ideal, a resposta definitiva, tanto quanto a pudermos obter, às questões de fundo.

É insano cindir a procura da verdade sobre estas questões da procura do bem no agir político, porque a ordem especulativa não se pode separar da ordem prática e a verdade não se distingue realmente do bem - a Metafísica prova-o. Um dos maiores males da política contemporânea é o de que ninguém já sabe ou ninguém já quer saber a resposta àquelas questões fundamentais. Enquanto assim for, todos os esforços dos nossos políticos consistirão em manter o país a rodar sobre si mesmo, sem progredir um milímetro. Enquanto não tivermos a ciência dos princípios, não podemos ter a prudência de agir concludentemente.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

ouvido na praia #1

mulher: viste o submarino lá ao fundo?
homem: não. qual submarino?
mulher: devia ser um daqueles que o Portas mandou vir.
homem: ah! o homem é um táctico inveterado, já previa afundar o país e precaveu-se.

Uma demissão irrevogável


Desde que Paulo Portas apresentou a sua demissão irrevogável ao Primeiro-Ministro, na passada terça-feira, que o país vive um alvoroço político. "Em pouco mais de 48 horas destruiu-se toda a credibilidade que Portugal havia recuperado perante os mercados financeiros." 
Vá-se lá saber que credibilidade é esta e muito menos quem são os mercados financeiros, mas da forma como dizem isto parece trágico e assustador para os portugueses. Parece que mudanças e rupturas, que assinalam fins de ciclos, são eventos tenebrosos e que estamos condenados ao triste fado de andarmos sempre à deriva e submetidos a sacrifícios, que (in)conscientemente sabemos, serão em vão, pois haverá sempre um Portas ou um mercado financeiro ao virar da esquina pronto a pressionar o botão do reset e acabamos por voltar à casa de partida. O problema é que a casa de partida é, em Portugal, há muito tempo a chamada "crise" e retoma-se novamente uma escalada dolorosa que acaba sempre numa aparatosa queda. Uma queda que é, há demasiado tempo, solitária, caimos sozinhos e nem podemos contar sequer com uma mensagem de apoio da UE, pelo contrário, como que se não fosse suficiente cairmos, e eventualmente partirmos uma perna, também nos pedem que comecemos a subir de novo a montanha, nem que seja sem uma perna, mas temos que a subir, custe o que custar. 
Ficámos reféns dos maus políticos, quer em Portugal quer na UE, e quando surge o momento da ruptura com esses políticos somos ameaçados com mais promessas de sacrifícios. Há que re-centrar a pessoa humana no centro da política e deixarmos de ilusões em Portugal. Mais tarde ou mais cedo estaremos sós (se não estamos já) no plano europeu e será, talvez, esse o momento ideal para repensarmos o que queremos da política portuguesa. Eu quero um Portugal mais justo e solidário. 

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Sobre a festa ou a ressaca da mesma – não sei bem

Os portugueses têm medo de ser felizes, digo eu. Ter opiniões é coisa má, de desordeiros – os outros é que são desordeiros. Vivemos literalmente à sombra do passado – somos conservadores (graças a Deus): mantenha-se tudo como está, que isto mudar nunca dá bom resultado. E em vez de serem soluções a abrir telejornais, são os problemas. E as soluções? Estão na parte de trás do livro – que é como quem diz: basta ler os títulos. Mas convém não ler mais do que isso.

Em vez de procurarmos oportunidades, procuramos as falhas.

Hoje entre as 20h e 20h06 foi-me nítida como nunca dantes a expressão ditadura dos mercados – abrem todos os telejornais a mandar estatísticas para o ar: aumentam os juros porque cai o governo e de repende há a prova irrefutável de que não existe alternativa – nem se ouse falar nisso, a bem da nação (!); eleições? elas são um problema dizem os outros – e se assim é, ninguém acredita que elas sirvam para alguma coisa. Foi claro como nunca que a UE é uma miragem e que somos governados a partir da Alemanha, ou melhor, de onde estiver o raio da Chanceler.  Somos muito bem educados mas muito mal informados – quem são os jornalistas; como se faz e para que serve o jornalismo? Para pensar não é certamente e o futebol não se joga assim.


Foram provavelmente os 6 minutos mais impressivos da minha vida política. Se isto é uma democracia, eu quero outra. (Se não é, quero uma).

Já começou a remodelação governamental

Pois é, já começaram as mudanças! 
Em breve uma frota de carrinhas será destacada para o Ministério dos Negócios Estrangeiros

À porta do Ministério das Finanças uma carrinha de mudanças (Foto Sónia Batista/SIC)

terça-feira, 2 de julho de 2013

Comunicado à Nação d'Os Típicos

Os típicos, após reflectirem cerca de 2 minutos e tendo em conta os mais recentes desenvolvimentos, vêm sugerir o procedimento de segurança a adoptar pelos portugueses:

1) Abrir uma garrafa de conteúdo alcóolico (para que se proporcione alguma euforia), em jeito de comemoração;

2) Finda a primeira garrafa, começar de imediato a recolher assinaturas pela vizinhança tendo em vista a feitura e apresentação de listas para as eleições legislativas. Deus nos salve do Tó Zé.


P.S.: Nome e nº de CC/ BI via e-mail, sff. Agradecidos.


Lisboa, 2 de Julho de 2013

há bases e bases, da base do vaso ao almanaque.

  Na ressaca da efeméride da tarde de ontem, já quase recuperado da desgostosa surpresa proporcionada - parece que ainda visualizo, mentalmente, a imagem da jornalista da SICN a ler a notícia que anunciava quem se sucederia no ministério das finanças. Naquele momento, voltou à primeira classe e leu, a medo, sílaba por sílaba, com a impressão de estar a dizer algum disparate, enquanto, ao mesmo tempo, lia e relia com o cérebro a mesma frase, para se assegurar do que lá realmente vinha escrito; impõem-se, antes de mais, palavras de apreço por Vítor Gaspar, homem de uma postura singular na rectidão e obstinação da defesa das suas ideias. 

  Mas, de facto, parece que como diz Gaspar era inadiável a sua saída, isto porque o guião que tinha preparado para justificar os resultados negativos atingidos e ainda por atingir ficou inutilizado quando um deputado do PCP revelou a sua base doutrinária, tão estudada pelo competente professor num gabinete da sua universidade e aplicada pelo mesmo técnico eficiente no escritório de uma qualquer instituição europeia. A vaga de calor que se faz sentir desde há uns dias já não poderá ser utilizada como justificação da diminuição de indicadores económicos por desincentivar à lavoura ou à condução de carrinhos de mão e transporte de baldes de cimento na construção.

  Disse ainda Gaspar que perdeu o suporte da base social, expresso pela erosão da aceitação das suas políticas na opinião pública. Perdeu Gaspar ou perdeu o Governo? Como pode usar Gaspar tal argumento se “nem foi eleito pelos portugueses”? Que base é essa? É uma espécie de base de um vaso? Que uma vez perdida e continuando a regar-se a planta provoca poças na área que a circunda? Ou se arranca a planta e se a deita fora e deixa-se evaporar a poça ou, como prefere Pedro Passos Coelho, qual dona de casa incompetente, se mantém vivo o projecto vegetal alimentando-o, limitando-se a mandar umas vassouradas nas poças que vão surgindo. Ora, umas quantas folhas vão sobrevivendo lá em cima, ao passo que cá em baixo, o lamaçal se expande.

  Largando a botânica, apetece-me dizer que a única pessoa que tem contribuído para assegurar o futuro de Portugal é Assunção Cristas, numa perspectiva não só de continuação da espécie mas também de alargamento da base demográfica, aumentando a sua prole. A procriação é um valor central dos cristãos e é a ministra que mais põe em prática os ideais do CDS, já que Pedro Mota Soares, na falta de conhecimento de feitos relevantes, só terá, em funções, visto sexo nas letras da sopa de massa e Paulo Portas… bom, Portas prezará mais o lado democrático do Centro, no sentido em que “abafou” Gaspar, o tal ministro não eleito e sem apoio do povo, o que, por certo, compensará outros eventuais pecados.

  António José Seguro, que se perfila como próximo Primeiro Ministro, clama sofregamente por eleições, mas esquece-se de como conseguiu atingir a liderança do maior partido da oposição. Através da conquista paulatina das bases do PS, não de meses mas de vários anos. Certamente não será adepto de futebol e nunca terá ouvido a expressão: “em equipa que ganha não se mexe” ou, adaptando-a: “estratégia vencedora não se muda” pois, nem estando ainda cumpridos dois anos de Governo já se lançava na cruzada para alcançar o poder, pedindo eleições. Para além de não ter asseguradas as bases aparentes, as que votam, não consta que tenha agendadas reuniões ou que tenha granjeado o apoio das outras, como Alexandre Soares dos Santos, António Mexia, Belmiro de Azevedo, Ricardo Salgado…

p.s.: o texto foi escrito antes da notícia da demissão de Paulo Portas.

"O Governo caiu definitivamente"

Este governo de iniciativa presidencial (desde Abril, quando o primeiro-ministro se dirigiu a Belém para pedir uma moção de confiança ao Presidente da República) caiu definitivamente com a saída do número dois do governo até então, o Prof. Doutor Vitor Louçã Rabaça Gaspar, sendo este a seu pedido exonerado do cargo, e a Dra. Maria Luís Casanova Morgado Dias de Albuquerque nomeada para ocupar o respectivo cargo. Pontos a destacar deste episódio político:
Primeiro ponto, fico surpreendido com esta saída, visto que Gaspar era o verdadeiro líder político deste governo, marcado pelo seu fanatismo do rigor financeiro, pelas pseudo-reformas do Estado, pelo pensamento marcadamente liberal e aprendiz de Wolfgang Schäuble. Passos Coelho perdeu o seu líder dentro do executivo.
Segundo ponto, a escolha para substituir Gaspar é incrivelmente má, e não merece mais algum comentário, pois a sua credibilidade é desde logo ferida pela controvérsia dos contratos swap na REFER e pela sua postura perante a comissão parlamentar de inquérito. 
Terceiro ponto, Paulo Portas, em teoria assumirá o número dois do governo, aliás já não deveria ser o número dois? Este actor político, o camaleão político de Portugal, assume com ainda mais força o estatuto de "político mais influente" em Portugal com a saída de Gaspar, visto que Gaspar seria o seu grande adversário político dentro e fora do executivo. Paulo Portas decidirá quando teremos eleições com a ruptura da coligação, pois antes, num cenário de eventual ruptura, poderíamos equacionar a hipótese de Passos Coelho, Poiares Maduro e Gaspar serem capazes de levar o Governo até ao fim do mandato. 
Quarto ponto, o Presidente da República, mas nós temos um presidente da república?! 
Quinto ponto, e o mais importante da questão, o Partido Socialista (não-Seguro) que comete mais um erro monumental, com a exigência imediata de uma audiência com o Presidente da República e a marcação de eleições legislativas antecipadas (mais uma vez). O partido não se encontra, actualmente, como uma verdadeira alternativa ao (des)governo de Passos Coelho. Isto é óbvio, Seguro ainda não demonstrou que será capaz de fazer diferente de Passos Coelho (e alguma vez demonstrará?) mas isto não prejudica algumas ideias "interessantes" que o partido tem lançado, contudo, not enough para Portugal mudar de rumo. E recentemente, com as notícias acerca de um eventual acordo cautelar entre PS e FMI para a manutenção de algumas medidas troikianas num plano de "ajustamento agradável" preocupam-me pois, se assim for, Seguro acaba mais uma vez fragilizado e o país mais fragmentado e impossível de se governar. 
Em síntese, este episódio é a demonstração clara da situação política de Portugal, estamos à deriva e com o aproximar das eleições autárquicas a queda do governo torna-se imanente e inevitável. Será o Partido Socialista capaz de emergir como um partido pós-troika? 

Fábio Amorim

O Tempo de Cada Um

Em tempos conheci um homem que, dizia ele, havia nascido no momento certo, no único momento em que poderia ter nascido.
O homem em causa retirava esta conclusão do facto do seu nascimento ter ocorrido em circunstâncias medicamente exigentes; se tivesse nascido dez ou, talvez, cinco anos antes , não existiriam os meios médicos necessários para impedir que o cordão umbilical, ou algo do género, o sufocasse no momento em que os seus olhos contemplaram, pela primeira vez, a luz deste mundo.
O momento do nascimento foi, diríamos, afortunado, mas o homem parecia extrair dessa fortuna um raciocínio que visava justificar a sua posição no mundo e o rumo geral da sua vida. Em virtude das circunstâncias do seu nascimento, ele teria que nascer naquele momento e em nenhum outro, ou seja, neste pequeno fragmento da História humana. Logo, segundo esta curiosa personagem, a sua vida teria que estar submetida a um propósito ainda oculto, a uma missão que teria um impacto visível no mundo em que vivia. As adversidades que enfrentava, crises pessoais e desaires seriam apenas um prelúdio à manifestação de um momento glorioso em que tudo faria sentido, em que tudo seria revelado. Procurar e entender esse momento -esse propósito- seria, assim, a demanda da sua vida. Pelo menos, esta é a minha interpretação das suas palavras, dado o contexto improvável da conversa.
Era uma forma de racionalizar a sua existência, algo que todos nós tentamos fazer. Como é evidente, é um raciocínio falacioso: a inexistência de tecnologia médica adequada apenas impediria o nascimento até ao aparecimento dessa tecnologia, nunca depois disso. Porque não depois, noutro momento, num futuro distante? Poderíamos, facilmente, concluir que o seu caso não é diferente de qualquer outro: o seu nascimento é fruto do acaso, misturado com sorte. Mesmo que resultasse da actuação de uma força divina, não me parecia que ele tivesse matéria de facto suficiente para sustentar tal teoria. Porém, não me sentia inclinado a promover um debate em torno da questão- era um pensamento interessante, por mais falhada que fosse a sua argumentação. Algures naquele tasco inominável ao qual fui parar, envolto numa penumbra de tabaco e empunhando a sua centésima imperial, o meu interlocutor falava com uma confiança férrea, com uma desenvoltura que só o álcool consegue proporcionar. Ali sentado, acabei por beber cada palavra, fascinado com, se nada mais, a fé que aquele homem colocava num conjunto tão circunstancial de factos.
A dada altura, dou por mim a pensar se, de alguma forma, aquele raciocínio se poderia aplicar a mim: será que nasci no momento certo, ou serei apenas um indistinto produto do acaso? E o que é o "momento certo"? Se assumirmos que tal conceito corresponde a uma forma de contributo para a elevação da humanidade, ou a uma forma de afirmação pessoal de acordo com o nosso papel na história, não posso deixar de sentir uma enorme desolação. Pergunto-me se não existiriam períodos históricos em que o contributo de algumas pessoas seria mais significativo. Pergunto-me se aquele criminoso que aparece nas notícias, por se ter envolvido numa rixa sangrenta, não teria sido, na Roma Clássica, um gladiador lendário. Pergunto-me se aquele meu amigo que preferiu abandonar a faculdade, e que sempre me fascinou com a profundidade do seu pensamento, não teria sido um brilhante filósofo renascentista. Ao invés, se Alexandre nascesse hoje, poderia aspirar à conquista do mundo? Se não, ele nunca seria Alexandre, mas algo diferente; algo, suspeito, não merecedor do epíteto "o Grande". No fundo, pergunto-me se não teremos nascido demasiado cedo ou demasiado tarde; se, noutro contexto histórico, não viveríamos com outro entusiasmo face aos acontecimentos que ditam a vida quotidiana. Citando uma passagem de um grande filme, somos "os filhos do meio da História", condenados a sonhar com um tempo, passado ou futuro, em que a nossa realidade seria radicalmente diferente- um tempo mais merecedor do nosso sangue e da nossa alma.                               



O autor deste texto repudia, desdenhosamente, o novo acordo ortográfico.










segunda-feira, 1 de julho de 2013

Definição de Felicidade #1 - Rituais pagãos

O suor escorre dos poros como uma fonte de água onde dezenas de animais se afogam, centímetro a centímetro, pela pele vermelha. A escuridão é limpa pelo fogo que lhes queima o ruído dos ouvidos e lhes permite fechar os olhos. Assim permanecem, queimados por si próprios, uns pelos outros. O tempo chicoteia-os e chama-os. Está na altura de saírem, de darem as preces por terminadas. Ignoram a dor lancinante nas costas e nada mais fazem senão continuar os murmúrios tão coordenados quanto uma família de patos-bravos a atravessar o rio sem que a corrente os leve.

Ninguém os leva.

São eles que chantageiam o tempo. Ele não tem nada para lhes tirar. Habituados a viver da natureza, fazem parte dela e apenas ela tem a lâmina capaz de cortar o fio da vida que lhes foi dada. É a ela que agradecem. É a ela que pedem uma vida exatamente igual à que têm.

O destino pesava-lhes. O ritual era uma troca que faziam, um sacrifício que aguentavam para a paz prosperar. Todos eles sabiam disto, que estavam nas mãos do destino. Quando perguntei a um se era feliz, no meio de um silêncio calado pelos grunhidos, ele parou por meio instante e perscrutou-me intensamente como uma criança.  A felicidade e a tristeza não podem sequer bater à porta num lugar onde se vive sobrevivendo, todos os dias.


Não sabem o que é a felicidade porque a tomam como garantida. 

Discutir o acessório sobre a demissão de Vítor Gaspar: eis o essencial

Já o Marquês de Pombal, estadista no rescaldo do terramoto de 1755 disse (algo como) que o necessário era enterrar os mortos e cuidar dos vivos. Hoje, alguns dos ex-ministros das Finanças decidiram-se, politicamente falando, pela via mais mal cheirosa. Ponto prévio: ficamo-nos pelo acessório - discutir o futuro político ( i.e.,  o que pode mudar ou não? Quais os dossiers que ficam pendentes?) fica para outra altura (“aquela altura em que haja jornalismo político bem feito em Portugal? Não: será tarde demais” - pensa para consigo mesmo o humilde escriba). Seguindo o exemplo da Sic Notícias, foquemo-nos - ou melhor: dispersemo-nos - no carnaval mediático que obriga a um certo esforço de abstracção: durante momentos duvidei sobre o que se estava a anunciar, tal foi a forma entendida adequada pela SicN de abordar a questão. A saber: chamar à conversa telefónica em directo antigos ministros das finanças (Miguel Beleza, Eduardo Catroga, Campos e Cunha), provavelmente em busca de uma reacção impressiva, genuína por parte dos antigos titulares da pasta. Primeiro duvidei, dizia; depois de ouvir os antigos ministros tive a certeza. Que certeza? A de que a saída de Vítor Gaspar do Governo não se trata de uma demissão política, mas de um funeral, caro leitor. Vejamos os traços fúnebres essenciais: de repente, (i) Vitor Gaspar passa a ser um homem bom (aquilo que se convenciona designar como um justo, em dialecto cristão)– boas intenções;  bases teóricas muitíssimo credíveis; (ii) há um conjunto de seres que enfermam de uma afinidade com o sujeito que sobreleva por uns instantes quaisquer outras, algo que como se sabe é norma social em funerais: neste caso, estarem de acordo quanto à inquestionável mais-valia que constituiu o defunto, i.e. Vítor Gaspar (a de terem sido ministros das finanças é, a esta luz, apenas peculiar); (iii) é bem sabido que não há funeral que se preze em que não compareçam viúvas carpideiras que choram profusamente o falecido, fazendo desta actividade um modo de vida, nos seguintes termos: qualquer sinal de superação da tristeza é reprovado - inclusive a aceitação do ocaso parece uma blasfémia (o que interessa é lamentar e/ou elogiar 300 vezes, se necessário). Abreviando, o que torna esta gente especialmente irritante é a insistência na tristeza que é prosseguida através do louvor do falecido até à náusea; estas senhoras de provecta idade exageram tanto que o “mero familiar” se interroga acerca da veracidade do seu pranto, sendo levado a pensar às tantas que há ali uma segunda intenção, como seja um certo gostinho macabro, tal o empenho dispensado na tarefa. Admitamos uma falha na metáfora: é certo e sabido que os ex-ministros muito raramente enviúvam entre nós; mas que houve um pendor, por certo muito genuíno, para o balanço histórico - muitíssimo prematuro, lá isso houve. Assim de repente, isto só acontece nos funerais.





P.S.: Fica desde já dito que o autor do presente texto não sabe escrever segundo o Novo Acordo Ortográfico.

domingo, 30 de junho de 2013

Árvore Bonsai

Desde pequeno que me dizem para ser alguém.
Desde pequeno que tento saber o que é isso de ser alguém.

Desde pequeno que me dizem que o meu futuro será brilhante se tiver um canudo debaixo do braço. "Ah, o belo do certificado que nos torna alguém!" pensei eu, já com uns copos a mais. Enganei-me. Não tanto no conteúdo dos ditos copos, mas sim na súbita epifania.

Ser alguém não é ter um canudo. Mas se pensarmos nisso, o canudo no sentido verdadeiro da palavra é feito de cartão, que por sua vez é feito de papel, que por sua vez vem das árvores. Então, um canudo até ser canudo passa por várias fases da sua efémera vida. Será que também sonha em quem foi numa vida passada? Ou em quem será numa vida futura? Não tem forma de saber que já foi uma árvore.

Ele não, mas em Portugal, somos árvores bonsai. Daquelas árvores miniatura, que nunca crescem em tamanho e vivem constantemente apavoradas a tentar garantir a sobrevivência. Não crescem porque há sempre alguém a cortar-lhes as raízes principais. A árvore bonsai oferece-se, é uma prendinha que se dá no Natal, que se guarda no escritório. "Oh, tão gira" diria a nossa tia do bibe cinzento.

Nós somos árvores bonsai.

Quando achamos que somos alguém porque temos um canudo, cortam-nos as raízes.
Quando percebemos que não é o canudo que faz de nós gente, continuamos de raízes cortadas.
Quando achamos que estamos na melhor fase da nossa vida e que temos o mundo pela frente, cortam-nos as raízes.
E vamos continuar aqui.
Nunca faremos parte de um pomar, nunca daremos pólen às abelhas.
Não enquanto nos cortarem as raízes.

domingo, 23 de junho de 2013

Desconhecidos

Não admites mas conforto é o que mais queres na vida. Tens medo de morrer sozinho e nem a garrafa vazia espelha a solidão com que tens de viver todos os dias. Não acendes a chama em ninguém, não aqueces nem confortas o suficiente. As baladas que cantas não encantam musas inspiradoras e as que ouves afastam-nas.

Todos querem alguém que os aqueça durante a noite e que os faça suspirar de alívio quando a desgraça assola o mundo. A estabilidade perfeita de alguém que aprendemos a amar porque nos dá jeito e é cómodo. As noites frias depressa se aquecem, o frio deixa de rasgar a pele quando espreitas de uma ravina. A ganância está em termos de onde beber e ainda assim, querermos um melhor vinho.

Assinam-se os termos e condições a que ninguém presta atenção. Eu aceito-te como a minha reconfortante companheira. Tu aceitas-me como o teu porto seguro. E ficamos assim, descrentes um no outro, desconhecidos.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Nobre Zeca, Nobre Povo

Em resposta ao post anterior do H.M. Dantas*:

Amanhã, o primeiro-ministro e um cortejo de outras fracas individualidades, virão até à Faculdade de Direito de Lisboa e provavelmente serão recebidos com um "Grândola Vila Morena".

Está bom de ver que discordamos desde logo na premissa (encoberta) do respeitinhoEstando livres desse escolho, pensemos. Note-se: somos governados por pessoas de cuja seriedade se duvida amiúde e a quem estão associadas uma série de características que nem acharíamos adequadas para o nosso carpinteiro, se me permitem o menosprezo pontual de quem faz da arte da canalização profissão sua (más companhias, inexistência de verdadeiro curriculum, incapacidade de identificar e resolver problemas). Ainda, e para quem não concorde com esta opinião preliminar, não custará reconhecer que as pessoas - sim, as pessoas, nós! - têm sido alvo de medidas duríssimas das quais resultaria naturalmente o descontentamento, mesmo com um outro governo competente e credível. Bom, exercício hipótetico como se sabe porque, assim sendo, as medidas teriam que ser outras logo - pasmem-se os que andam distraídos -  a reacção seria outra.

Perante isto, que fazemos nós? Cantamos. Claro que eu admito que há um certo embaraço que é indisfarçável em ouvir o Governo do país ser calado, literalmente, por um conjunto de cidadãos. Então, o poder caiu na rua? Talvez fosse isto que valesse a pena discutir. Ao invés, há por aí quem, moralizando, arrisque argumentos demasiado laterais para serem levados a sério, como os trazidos aqui pelo H.M. Dantas, cuja tese se resume em: "Zeca Afonso deve estar a dar voltas no caixão por ouvir uma música sua ser tão cantada/ por algumas pessoas/ para fins de contestação, portanto políticos em sentido amplo". Não é preciso ser o maior dos conhecedores da vida, obra e pensamento político de Zeca Afonso para perceber que isto para ele nunca seria menos do que uma efeméride muito feliz. Analisemos com seriedade q.b. um argumento não sério:  sempre se tem ouvido que as canções do Zeca são insusceptíveis de apropriação desta ou daquela facção. Que eu saiba, uma canção torna-se vulgar quando é cantada por muita gente. Aliás, é para isso que elas existem e é disso que se orgulham os seus compositores. Ora, é curioso que o H.M. Dantas venha invocar que a Grândola está caduca, ao mesmo tempo que diz esta "era um símbolo, se o era", mostrando-se portanto desgostoso, desiludido - em suma, H.M. Dantas perdeu a vontade de cantá-la. Como ele, há mais. Nada contra: já há por aí quem desafine o suficiente. Fica difícil é de conceber que uma canção menos cantada ou seja, só cantada "por alguns" neste contexto passe por isso a ser de uma "vulgaridade ultrajante". A esta altura, já o leitor percebeu que a dupla adjectivação feroz se refere ao propósito contestatário com que a música tem sido cantada - até porque falamos de uma canção que é repetida ano após ano no 25 de Abril e não é isso que é ali invocado. Onde se percebe o resgatar da ditadura: é lá que é permitido - bem-vindo - catalogar uma acção de que se discorda como atentatória da moral e dos bons costumes, o dito "ultraje". E tentar desumanizar o acto, como se não fosse desencadeado pelas condições de vida cada vez piores - perante estas, canta-se - e não prosseguisse o desiderato de mudar o rumo dos acontecimentos.

Talvez fosse melhor discutirmos política, em vez de canções.



*É também para isto que serve um blog.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Cântico de Humanidade


"Hinos aos deuses, não.
Os homens é que merecem
Que se lhes cante a virtude.
Bichos que lavram no chão,
Actuam como parecem,
Sem um disfarce que os mude.

Apenas se os deuses querem
Ser homens, nós os cantemos.
E à soga do mesmo carro,
Com os aguilhões que nos ferem,
Nós também lhes demonstremos
Que são mortais e de barro."

Miguel Torga, in 'Nihil Sibi'

sábado, 16 de fevereiro de 2013

O (auto-intitulado, que nem podia ser de outra maneira porque desconfio que seja impossível saber) primeiro post mais curto da blogohistória

1º post, 1º post... Há-que fugir de certos lugares comuns para começar em grande, veja-se o contra-senso - e portanto não farei nenhuma apresentação longa ou vagamente profunda sobre: o que é isto; a que se propõe isto; de que falaremos aqui; nem de quem sou, de onde venho e para onde vou (ai a profecia do lugar comum a perseguir-me) - guardemos isso para alturas de insónia ou de menores afazeres. Entretanto, espero ter cumprido o desiderato aposto no título. Se esse não provar, candidato-me ao título mais comprido da blogohistória. A propósito, já alguém tinha escrito blogohistória antes?

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Florbela e Junqueiro

Comprei hoje dois livros na FNAC, ambos pertencentes à «Coleção Klássicos» - que, para nos exprimirmos em bom português, diremos que é uma colecção de títulos clássicos da literatura portuguesa, vendidos ao público a preço não proibitivo. É raro em Portugal desimpedir tão liberalmente o acesso à cultura. Cada uma das obras da referida colecção - que integra algumas das melhores realizações da nossa cultura em todos os tempos - é vendida a 2,50€. Quanto à materialidade, as edições não serão das mais admiráveis como objecto. Além disso, alardeiam os seus publicadores de que esta é a primeira colecção de língua portuguesa que respeita o acordo ortográfico - o que mais preferira esconder. Não obstante, passe: remonte-se à substância da questão e achar-se-á nela virtude.

Comprei dois livros, como disse: colmei duas lacunas na minha biblioteca - a primeira, Pátria, de Guerra Junqueiro, a segunda, os Sonetos, de Florbela Espanca.

O último destes livros de versos reúne os sonetos de Florbela, desde as páginas de O Livro das Mágoas até à Charneca em Flor. À medida que se lê percebe-se bem o crescendo operado por Florbela desde alguns dos sofríveis sonetos com que iniciou a sua carreira literária até alcançar o domínio quase perfeito da técnica do soneto nas derradeiras composições, o que significa, sobretudo, aliar as exigências do ritmo à expressividade da oração - atinge o zénite do seu estro no soneto Amar!, em que dá a síntese definitiva de tudo quanto escreveu quando confessa a urgência de «amar, amar perdidamente», num movimento da vontade e da sensibilidade que se antolhe mesmo indiferente a qualquer juízo moral - «É mal? É bem?». Mas ensombra já o precípuo momento da obra o prenúncio do destino fatal, anunciado no soneto chamado Não Ser - «Quem me dera» - escreve ela - «voltar à inocência das coisas brutas, sãs, inanimadas».

Pátria, de Junqueiro, merece-me uma atenção toda especial por culpa daquele elogio que lhe fez Fernando Pessoa um dia, o dia em que lhe perguntaram qual era a melhor obra da literatura portuguesa dos últimos trinta anos. Dos últimos trinta anos, bem como de toda a literatura lusitana, disse ele, a melhor obra que já se deu à estampa foi Pátria, de Junqueiro. Os Lusíadas - concede Pessoa, quase por delicadeza - ocupa honrosamente o segundo lugar. Uma pretensão surpreendente, na origem da qual está quase de certeza o acinte que Pessoa sempre reservou a Camões. Celebrado como o grande poeta pátrio, Camões foi, por assim dizer, a némesis de Pessoa, com o qual ele procurou medir forças a quatro séculos de distância. Nunca - e é preciso ter este facto em consideração para avaliar bem aquelas declarações -, nunca foi com Junqueiro, ou com este seu livro, que Pessoa se preocupou em rivalizar. De qualquer forma, para ajuizar rectamente da verdade, lerei o livro e verei se no final me resta a ousadia de o proclamar também o melhor da nossa literatura - pelo menos, à frente de Os Lusíadas.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Sê quem tu és

«Sê quem tu és» - dizem-te hoje de todos os lados. Se com isso querem dizer para fugires daquilo que em consciência sabes ser mentira, está bem dito; se querem antes dizer para te resignares contigo, não te podiam dar pior conselho. Aceitares-te sem reservas é como trazeres para morar contigo o teu pior inimigo. Sabes bem o quanto és mau. Quantas das coisas que a cada momento pensas te envergonhariam de morte se aqueles que mais amas as pudessem ver? Quantas das coisas que fazes todos os dias ocultamente, se postas a descoberto, não te condenariam aos olhos dos que gostam de ti? Não procures ser quem tu és: procura ser bom.

Questão de delicadeza

É uma questão de delicadeza agradecer os elogios que nos são feitos, embora se lhes deva dar pouco ou nenhum crédito. É também conveniente, de quando em vez, ser reprovado ou criticado, mesmo quando se tem pouca ou nenhuma culpa no erro que se cometeu ou até nas ocasiões em que se não errou em coisa alguma. Tais episódios têm um préstimo, a saber, apoquentar a vanglória. Os louvores dos homens não são nada: aqueles que te exaltaram logo se desfazem de ti e aqueles que caminharam contigo não te ampararão na tua queda.

Pessoa e o seu génio

Nunca me deixa de surpreender Pessoa e o seu génio. Que foi poeta, e dos melhores que já tivemos, ninguém o discute. Que foi prosador, melhor ainda do que foi poeta, é o que acabará por se descobrir quando o homem um dia puder abandonar com o prazer de obra lida o Livro do Desassossego. Mas Pessoa não escreveu só; por exemplo, foi também inventor: um dos muitos rostos do seu génio que poucos conhecem. Transcrevo a seguir uma notícia do Diário de Notícias, datada de 30 de Novembro de 2005.

«Empreendedor e inventor 

É o Pessoa empreendedor e inventor, por vezes alucinante, que o escritor António Mega Ferreira foi descobrir. E fê-lo pelo lado da sobrevivência material, daquilo que o poeta chamava "não sem desconfiança a vida prática", fazendo justiça ao "inultrapassável trabalho de João Rui de Sousa" (Fernando Pessoa, Empregado de Escritório, Sitese, 1985). Sobre as suas iniciativas comerciais, empresariais e em nome individual, tratam os textos incluídos na obra Fazer pela Vida/Um Retrato de Fernando Pessoa, o empreendedor (Assírio &Alvim).

Estuda-se neste livro, de leitura aliciante, o que foi "empreendimento seu, o de Pessoa, mesmo que sonhado (com os seus numerosos inventos)". Mega Ferreira fala daquele que foi algumas vezes até empresário, abordando outras suas tentativas para "fazer dinheiro".

A empresa Cosmópolis - que Zenith entende poder ter sido o primeiro nome da Olisipo -, é um impressionante exemplo da largueza de interesses de Pessoa. Tratava o projecto de informações diárias a propósito de câmbios, de partidas e chegadas de vapores, de viagens de comboio, de traduções, da montagem e realização de escritos, de buscas e trabalhos literários por encomenda, etc.

Quanto ao Pessoa inventor, refira-se a "carta-sobrescrito", que viria a popularizar-se na II Guerra Mundial, um carreto da máquina de escrever (na ilustração), um sistema de estenografia, um projecto de máquina para guardar papéis... O Pessoa editor não fica esquecido neste livro revelador.»

Lido em: http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=630476

Convite

Convidou-me João Mendes para ser co-redactor do presente blogue. Na altura do convite, perguntei-lhe eu de que tratava o mencionado blogue. Respondeu-me ele que tratava de tudo – querendo com isto indicar que não tratava de nada. Essa resposta, mais que qualquer outra, agradava ao carácter naturalmente diletante do meu espírito. Eis uma das razões – sem ser, contudo, a principal - que me fez aceitar tão amável convite. Além dessa, há outra, a suprema. Essa ressuma no fundo do meu ser e não posso abandoná-la. Escrever, em mim, não é coisa à parte de viver. Sou neste aspecto menos livre que todos. Não está na minha disponibilidade recusar este convite. A mesma condição patológica que me constrange a escrever, constrange-me a aceitá-lo.

Não há mais escrever do que escrever para ser lido. Que assim é, é coisa que se deduz do próprio acto de escrever, pois que a função natural da linguagem é comunicar algo ao outro. O nosso Fernando Pessoa, que morreu praticamente impublicado, escrevia para o mais obscuro de todos os públicos, os vindouros, nos quais encontrou o prazer presente da fama futura. Eu, que como todos os que escrevem, escrevo para ser lido, não quero esperar pelos vindouros. O que resulta das considerações precedentes é que a atracção inelutável pela escrita vem sempre acompanhada da vontade de dar a ler aquilo que se fez com as palavras, mais tarde ou mais cedo, e sempre mais cedo do que tarde. Por isso, é pueril que me façam até aquela objecção sonhada de que se pode escrever uma literatura sepulta. Não pode. Aceitar publicar, como aceitar escrever, é sintoma de uma só enfermidade do espírito, aquela mesma que vai entranhada no meu ser.

Escrever é um acto de grandeza, entenda-se isto no bom ou no mau sentido que possa ter. Escrever, porque é sempre comunicar, é sempre dirigido ao outro, e dirigido ao outro como partindo de nós e levando algo que é nosso – é sempre pretender que se tem o que dizer ao mundo. Pôr fora de nós a nossa individualidade, pedir que nos oiçam ou leiam, supõe sempre certa presunção. Que me diz que faço melhor aos homens preferindo a palavra ao silêncio? E escrever é, evidentemente, uma certa nudez, já não do corpo, mas do espírito. O que se escreve é uma janela que dá para a alma. Expomo-nos demasiado quando escrevemos: trazemos para a luz tanto da nossa inteligência, tanto da nossa vontade, tantas e tantas das nossas paixões, e, afinal, também os limites em que elas se encerram. A escrever me obriga a lei a que estou sujeito – nunca obedeço livre do embaraço que acompanha a satisfação pública de uma compulsão.

Tais as razões - tão lúcidas quanto as consigo achar - para aceitar escrever para este blogue.