segunda-feira, 1 de julho de 2013

Discutir o acessório sobre a demissão de Vítor Gaspar: eis o essencial

Já o Marquês de Pombal, estadista no rescaldo do terramoto de 1755 disse (algo como) que o necessário era enterrar os mortos e cuidar dos vivos. Hoje, alguns dos ex-ministros das Finanças decidiram-se, politicamente falando, pela via mais mal cheirosa. Ponto prévio: ficamo-nos pelo acessório - discutir o futuro político ( i.e.,  o que pode mudar ou não? Quais os dossiers que ficam pendentes?) fica para outra altura (“aquela altura em que haja jornalismo político bem feito em Portugal? Não: será tarde demais” - pensa para consigo mesmo o humilde escriba). Seguindo o exemplo da Sic Notícias, foquemo-nos - ou melhor: dispersemo-nos - no carnaval mediático que obriga a um certo esforço de abstracção: durante momentos duvidei sobre o que se estava a anunciar, tal foi a forma entendida adequada pela SicN de abordar a questão. A saber: chamar à conversa telefónica em directo antigos ministros das finanças (Miguel Beleza, Eduardo Catroga, Campos e Cunha), provavelmente em busca de uma reacção impressiva, genuína por parte dos antigos titulares da pasta. Primeiro duvidei, dizia; depois de ouvir os antigos ministros tive a certeza. Que certeza? A de que a saída de Vítor Gaspar do Governo não se trata de uma demissão política, mas de um funeral, caro leitor. Vejamos os traços fúnebres essenciais: de repente, (i) Vitor Gaspar passa a ser um homem bom (aquilo que se convenciona designar como um justo, em dialecto cristão)– boas intenções;  bases teóricas muitíssimo credíveis; (ii) há um conjunto de seres que enfermam de uma afinidade com o sujeito que sobreleva por uns instantes quaisquer outras, algo que como se sabe é norma social em funerais: neste caso, estarem de acordo quanto à inquestionável mais-valia que constituiu o defunto, i.e. Vítor Gaspar (a de terem sido ministros das finanças é, a esta luz, apenas peculiar); (iii) é bem sabido que não há funeral que se preze em que não compareçam viúvas carpideiras que choram profusamente o falecido, fazendo desta actividade um modo de vida, nos seguintes termos: qualquer sinal de superação da tristeza é reprovado - inclusive a aceitação do ocaso parece uma blasfémia (o que interessa é lamentar e/ou elogiar 300 vezes, se necessário). Abreviando, o que torna esta gente especialmente irritante é a insistência na tristeza que é prosseguida através do louvor do falecido até à náusea; estas senhoras de provecta idade exageram tanto que o “mero familiar” se interroga acerca da veracidade do seu pranto, sendo levado a pensar às tantas que há ali uma segunda intenção, como seja um certo gostinho macabro, tal o empenho dispensado na tarefa. Admitamos uma falha na metáfora: é certo e sabido que os ex-ministros muito raramente enviúvam entre nós; mas que houve um pendor, por certo muito genuíno, para o balanço histórico - muitíssimo prematuro, lá isso houve. Assim de repente, isto só acontece nos funerais.





P.S.: Fica desde já dito que o autor do presente texto não sabe escrever segundo o Novo Acordo Ortográfico.

6 comentários:

  1. Aplausos, João. Muito bem concebido. Gostei imenso do teor humorístico e crítico. Aguardo expectante os próximos artigos.

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  2. A funérea metáfora é bem apanhada... ou amanhada, caro João. Por vezes questiono-me, até, se não ocorre, logo à partida, que a escolha para este tipo de minesteriáveis não recai sobre «zombies», sempre com morte adiada, mas espalhando mortal peçonha em tudo quanto tocam... Enfim, uma espécie de Midas às avessas.
    As personalidades carpideiras seleccionadas alinham todas pelo mesmo diapasão, pelo que dificilmente será esperar que digam mal umas das outras. Mas serão, certamente, as primeiras a lançar os punhados de terra sobre a tumba, pois interessa que a pestilência seja rapidamente abafada.
    É este um fenómeno chato, na verdade. O que fede tende a feder qualquer que seja a pituitária que dele se abeire.

    Belo artigo. Também gostei de ler.

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  3. Ainda a propósito da citação ao Marquês, mas articulada com o inefável Gaspar, lembrei-me de uma resposta, em prova escrita, de aluno mais despassarado, lá pelos idos de 60 e publicada, salvo erro, pelo suplemento A Mosca, do Diário de Lisboa:

    «- O Marquês do Pombal notabilizou-se no terramoto de 1755 porque andava, em Lisboa, com um carrinho de mão, apanhando os mortos e enterrando os vivos...»

    Não sabia aquele então jovem examinando quão justas aquelas palavras se adaptadas à função governativa do Gaspar do nosso descontentamento.

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  4. Obrigado, caro Jorge. Eis o início, apenas e só.
    Essa história que conta é muito bem apanhada e o descontentamento é o mesmo. Ao contrário do que dizem e pretendem, talvez sejamos 1 geração. Ao menos no descontentamento.
    Quanto a fedores, aproveitei a referência e inseri-a num P.S. ao mais recente post.
    Continue a parar por aqui. Não garanto que valha a pena, mas tentar não custa.

    Um abraço,

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