Quem me conhece sabe que é meu hábito andar por aí com o
calçado desapertado. Não é de agora - os hábitos de infância são, em geral,
bons de manter. Assim andando, vou sendo
avisado por quem passa ou vê passar para o facto, como se ele fosse qualquer
coisa importante. Dirá o leitor que a cordialidade dos transeuntes contrasta
com o meu próprio desmazelo. Não me parece, admitindo discordâncias neste ponto
absolutamente irrelevante. O que de interessante há nisto é a extraordinária amostra
de solicitude das gentes que podemos observar. Observemos então: é legítimo
pensar que aquele que avisa previne uma queda embaraçosa para o sujeito
desatado. Haverá um risco diminuído pela acção do observador, em consequência. Mas
que risco há mesmo? Não creio haver relatos de situações como aquela em que
António pisa com o sapato apertado o atacador desapertado, e acto contínuo,
inclina-se para a frente, desferindo portentosa cabeçada no espantoso peito de
Bruna que, incapaz de suportar virilmente o impacto, tomba para trás batendo
com a cabeça no chão e morrendo. Ora, o que com isto pretendo provar é que o
aviso visa, essencialmente, proteger o destinatário do mesmo. Portanto, a acção
solícita é altruísta. Tenho para mim que o altruísmo é bom e que será tanto melhor
quanto mais importante for o fim com que é praticado. Claro que existem
diferentes perspectivas sobre a importância do fim: a minha e a de quem me
avisa - eu, ser pouco dado a apertos, tendo a achar que é desproporcionado o
altruísmo que é dedicado a um atacador; a verdade é que a realidade obriga-me a
constatar que esta minha opinião é claramente minoritária. Não é que seja algo
desprezível, embora às tantas incomode. O que eu gostava mesmo é que se tomasse
consciência da magnitude deste nosso costume bem como da inconsequência
ontológica do sapato desapertado em via pública. Estaria então dado o primeiro
passo para civilizar um pouco a malta da metrópole no que toca à interacção
social. Eis o egoísmo como supremo altruísmo, no fim de contas.
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