terça-feira, 1 de outubro de 2013

Uma pedra no sapato

Quem me conhece sabe que é meu hábito andar por aí com o calçado desapertado. Não é de agora - os hábitos de infância são, em geral, bons de manter.  Assim andando, vou sendo avisado por quem passa ou vê passar para o facto, como se ele fosse qualquer coisa importante. Dirá o leitor que a cordialidade dos transeuntes contrasta com o meu próprio desmazelo. Não me parece, admitindo discordâncias neste ponto absolutamente irrelevante. O que de interessante há nisto é a extraordinária amostra de solicitude das gentes que podemos observar. Observemos então: é legítimo pensar que aquele que avisa previne uma queda embaraçosa para o sujeito desatado. Haverá um risco diminuído pela acção do observador, em consequência. Mas que risco há mesmo? Não creio haver relatos de situações como aquela em que António pisa com o sapato apertado o atacador desapertado, e acto contínuo, inclina-se para a frente, desferindo portentosa cabeçada no espantoso peito de Bruna que, incapaz de suportar virilmente o impacto, tomba para trás batendo com a cabeça no chão e morrendo. Ora, o que com isto pretendo provar é que o aviso visa, essencialmente, proteger o destinatário do mesmo. Portanto, a acção solícita é altruísta. Tenho para mim que o altruísmo é bom e que será tanto melhor quanto mais importante for o fim com que é praticado. Claro que existem diferentes perspectivas sobre a importância do fim: a minha e a de quem me avisa - eu, ser pouco dado a apertos, tendo a achar que é desproporcionado o altruísmo que é dedicado a um atacador; a verdade é que a realidade obriga-me a constatar que esta minha opinião é claramente minoritária. Não é que seja algo desprezível, embora às tantas incomode. O que eu gostava mesmo é que se tomasse consciência da magnitude deste nosso costume bem como da inconsequência ontológica do sapato desapertado em via pública. Estaria então dado o primeiro passo para civilizar um pouco a malta da metrópole no que toca à interacção social. Eis o egoísmo como supremo altruísmo, no fim de contas.

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